A irrelevância econométrica no debate sobre a inflação global
Artigo | Tony Volpon, em 24.03.2021

(AE NEWS ) – O grande debate nos mercados globais é sobre o tamanho e a extensão da esperada alta da inflação a nível global nos próximos meses, especialmente nos EUA.

Olhando para as projeções consensuais do mercado, elas hoje se alinham bem com os argumentos do Federal Reserve de que qualquer repique inflacionário dever ser transitório, com alta de juros ocorrendo somente em 2023 ou 2024.

Qual a base conceitual desse otimismo? Ela se deve a um conjunto de relações empíricas que, nos últimos anos, especialmente desde a Grande Crise Financeira de 2008 (GCF), tem determinado baixas taxas de inflação.

A primeira, e mais importante, é o “achatamento” da Curva Phillips, a relação empírica entre o nível da atividade (medidas de diferentes formas) e o nível da inflação e/ou salários. A relação nunca foi estável, mas na maioria dos anos houve uma relação negativa entre o nível de desemprego e o nível de inflação. Mas, depois da GCF, essa relação perdeu força, ao ponto que, apesar de uma queda da taxa de desemprego nos EUA para o nível de 3,6% em 2019 (o menor nível desde 1968), o núcleo do PCE (a medida de inflação preferido do Fed) fechou o ano em 1,65%, abaixo da meta de 2%. Um estudo mostra que o “beta” (coeficiente de relação) entre a taxa de desemprego e a inflação é 90% menor depois da GCF do que o que tínhamos no período entre 1970 e 1990.

Com o choque da pandemia, a taxa de desemprego saltou para 13%, e atualmente está em 6,7% (uma das mais rápidas recuperações da série histórica). Mas como Jay Powell gosta de lembrar, a taxa ajustada ao desalento e trabalho intermitente (a medida conhecida como U6) está bem maior, em 11,1%.

Apesar de sua importância, o nível de utilização da economia não é o único fator determinante da taxa de inflação, fato reconhecido nos modelos de inflação usados pelos bancos centrais e pelo mercado. Estudo recente do banco UBS tentou atribuir a diferentes fatores o nível da inflação em diferentes economias, incluindo a tendência da inflação (sua inércia), choques do preço de petróleo e variações na taxa de câmbio, além do hiato do produto.

Os resultados mostram que, no caso de dos países desenvolvidos, o hiato do produto explica somente 15% da variação da inflação, com oscilações do preço do petróleo tendo um peso bem maior, acima de 30%. A parte da inflação inexplicada pelo modelo (o “residual”) chega a 30%. Para as economias da América Latina, o residual chega a ser superior a 60%!

Mesmo dado esse enorme nível de incerteza, uma projeção desses fatores ainda implica uma dinâmica benigna para a inflação. Parte disso vem da observação de que o choque pandêmico teve um efeito altamente assimétrico na economia. De um lado, a adoção de medidas de distanciamento social levou a uma forte queda nos preços do setor de serviços, que no caso dos EUA e Europa foi de 2% contra a tendência de crescimento desses preços (que compõem cerca de 26% do índice de preços ao consumidor, CPI). Do outro lado, o significativo apoio à renda via políticas fiscais gerou um forte crescimento no consumo de bens duráveis (ao redor de 21% do CPI) que hoje está 3% acima de seu crescimento tendencial. Fenômeno igual foi observado no Brasil.

Assim, enquanto a abertura efetiva do setor de serviço deve elevar os preços desse setor (especialmente levando em conta que parte da oferta foi negativamente afetada pelo fechamento de vários estabelecimentos), isso deve ser parcialmente compensado pela queda de consumo de bens duráveis. A trajetória da inflação neste ano será em grande parte determinada pela velocidade e intensidade da esperada reversão à média (em direção opostas) dos preços desses dois setores.

Outro fator potencialmente benigno é a esperada reversão do forte impulso fiscal deste ano nos EUA. Olhando o padrão temporal dos vários pacotes fiscais aprovados nos EUA, o verdadeiro “delta” positivo ( a variação ano sobre ano) ocorreu entre 2019 e 2020 com a aprovação do “Cares act” no início de 2020. A aprovação do pacote fiscal do governo Biden é, de fato, o maior dos montantes aprovados em 2020, mas o impulso fiscal derivado é bem menor. E, apesar de o governo Biden dever aprovar um pacote de infraestrutura de US$ 3 trilhões, a despesa efetiva deve demorar vários anos e pode ser parcialmente compensada com alta de impostos. Assim, o impulso fiscal em 2022 deve ser negativo.

Levando tudo isso em conta, podemos facilmente concluir que as perspectivas para a inflação são de fato benignas, e que as recentes altas nas taxas de juros de mercado seriam somente uma limitada precificação de um prêmio de risco devido às incertezas sobre a intensidade desses ajustes, e não o início de uma reversão da tendência de queda secular de juros desde antes da GCF.

Mas não é essa nossa avaliação. O que essas análises ignoram é que, como corretamente colocado por Robert Lucas em trabalho seminal de 1976, resultados econométricos são frutos de relações empíricas derivadas daquilo que ele chamou de “parâmetros profundos” que determinam como os agentes econômicos reagem a choques exógenos determinando suas decisões dinâmicas sobre alocação intertemporal. Parte importante disso se dá pelos regimes fiscais e monetários dentro do qual essas decisões são tomadas.

O que está ficando cada vez mais evidente é que está ocorrendo uma histórica mudança dos regimes monetários e fiscais nos EUA (e, talvez não tão claramente, em outros países).

Do lado monetário, o Fed tem uma nova meta de inflação (uma média no tempo) com uma nova estratégia operacional (inflação corrente e não mais prospectiva/projetada). Sua meta de desemprego agora é “inclusiva”, olhando para diferentes faixas de renda e sua composição social e racial.

Do lado fiscal temos uma sequência de pacotes cuja única aparente limitação é seu impacto na inflação, e não nenhuma análise sobre a necessidade de eventualmente estabilizar/reverter a trajetória altista dos índices de endividamento (devemos notar que essa lógica, abertamente defendida por integrantes do governo Biden, está de acordo com as análises e prescrições da tal “teoria monetária moderna”, e que, não por acaso, tem uma de suas maiores expoentes, Stephanie Kelton, assessorando o líder democrata do Senado, Chuck Schumer).

A inflação é um processo complexo e social, e não um evento determinado por algumas variáveis econômicas captadas pela econometria. É verdade que pode demorar para os agentes perceberem que os regimes monetários e fiscais de fato mudaram – a tendência natural é de sempre pressupor que o futuro vai repetir o passado. Esse ajuste parcial e lento de expectativas deve de fato levar inicialmente a resultados mais benignos para a inflação no curto prazo. Mas, ironicamente, esse “sucesso” temporário dos novos regimes ficais e monetários pode bem servir de justificativa para mais gastos fiscais e maior relutância por parte do Fed em apertar a política monetária, gerando novos impulsos inflacionários. Eventualmente os agentes vão perceber quer as “regras do jogo” mudaram, e esse ajuste pleno de expectativas deve então gerar novo processo inflacionário secular, revertendo os resultados benignos das últimas décadas, repetindo a experiência vista nos EUA entre os anos 60 e os anos 70.

Tony Volpon é estrategista-chefe da WHG e ex-diretor do Banco Central; autor do livro Pragmatismo sob Coação: Petismo e economia em um mundo de crises, pela Alta Books