Por Tony Volpon, em 22.11.2021
(Broadcast+) – A grande maioria dos trabalhos acadêmicos que são publicados acaba tendo pouco (e muitas vezes nenhum) impacto. No máximo, adicionam algum pequeno elemento ao lento processo da acumulação de conhecimento científico. Mas, ocasionalmente é publicado algo que capta o “zeitgeist”, transformando os rumos do debate e questionando aquilo considerado como a verdade absoluta em assunto específico.
E é o que está acontecendo desde setembro com o trabalho publicado por Jeremy Rudd intitulado “Why do we think that inflation expectations matter for inflation? (and should we?)” (1), traduzindo: “Por que que pensamos que as expectativas de inflação são importantes para a inflação? (e deveríamos?)”. Nesta intervenção de 27 páginas, Rudd tem a temeridade, como ele mesmo escreve, de questionar algo que “todos sabem ser verdade”: que as expectativas de inflação são um importante, talvez o mais importante, determinante da inflação.
Rudd não é nenhum desconhecido crítico da ortodoxia e do mainstream econômico. Possui um currículo de serviço público como economista que vem desde 1993, passando pelo Conselho Econômico da Casa Branca, Secretário Assistente do Tesouro, e, desde 1999, Conselheiro Sênior do Federal Reserve na área de pesquisa e estatística. Graduado de Harvard, fez PhD em Princeton, universidade de destaque na criação do dominante paradigma monetária novo keynesiano (2) (e onde, talvez não por acaso, muitos membros do Banco Central estudaram, de Arminio Fraga e Eduardo Loyo, até o recém indicado ao Copom, Diogo Guillen).
Para Rudd, a importância dada às expectativas de inflação, tanto na teoria como na prática dos bancos centrais, onde o “gerenciamento” e a “ancoragem” das expectativas acabam sendo importante meta da política monetária, é desnecessária e contraproducente. Rudd justifica sua conclusão criticando os pressupostos teóricos que vem dos anos 1960 em trabalhos pioneiros de Phelps e Friedman, passando pela “revolução das expectativas racionais”, de Lucas, e o posterior desenvolvimento do paradigma novo keynesiano.
Suas críticas são detalhadas, e quem se interessar pode (e deve) examiná-las, não sendo possível um rápido resumo. Mas, um dos pontos mais interessantes é a afirmação que esses modelos em grande parte mostram a importância das expectativas de curto prazo (do “próximo período”) como sendo relevantes para a determinação da inflação, e não expectativas mais longas. Rudd nota que hoje a prática dos bancos centrais é dar muito mais atenção à ancoragem das expectativas longas, algo que não tem base no resultado desses modelos.
Rudd passa para analisar as evidências empíricas, e nota que por vários problemas de identificação (especificamente a falta de bons instrumentos), que “não há evidências a favor ou contra a importância das expectativas” na determinação da inflação.
Enquanto até este momento as críticas de Rudd são de natureza bastante técnica, onde as críticas da importância das expectativas ganham relevância mais prática é quando o autor descreve o que sabemos de como os agentes econômicos determinam preços e salários.
As evidências sugerem que empresas respondem a aumentos de custo quando elas ocorrem e chegam nos seus consumidores, e não de forma “preventiva”, antes de acontecerem. Muitos aumentos de custo são idiossincráticos e específicos a determinados setores e indústrias, retirando importância de aumentos de custos marginais reais em relação à inflação agregada – que é o mecanismo usado nos modelos novo keynesianos para dar importância às expectativas.
Rudd volta ao ponto que, apesar de teoricamente, são as expectativas de curto prazo que importam para a inflação, há de fato empiricamente alguma correlação entre expectativas de longo prazo e a tendência (estocástica) da inflação. A relativa estabilidade e falta de “resposta” da tendência da inflação aos movimentos cíclicos da economia depois de 1990 é a “característica mais notável” da inflação nos EUA que merece análise, já que muitos atribuem esse resultado ao ganho de credibilidade dos bancos centrais neste período.
Para ele, essa correlação não é prova de causalidade, e é igualmente plausível argumentar que as expectativas estão sendo determinadas pela inflação corrente, onde a estabilidade da inflação aumenta a subsequente correlação.
Rudd agora oferece uma interpretação alternativa da dinâmica inflacionária, uma interpretação que tem diretas consequências para o debate atual, em um momento de alta global da inflação.
Para o economista, parece plausível argumentar que a boa performance da inflação nos EUA a partir dos anos 1990 tem muito a ver com o baixo nível da inflação. Isto é, depois da forte desinflação do período Volcker, o baixo nível da inflação, junto com a subsequente queda do nível de sindicalização e efeitos da globalização, rompeu a relação entre salários e preços que foi mais prevalente durante o período de alta inflação dos anos 1960 e 1970. Assim, períodos de inflação mais alta (como entre 2007-2009) não levaram, via o mecanismo de expectativas, à alta subsequente da inflação.
No mercado de trabalho americano, onde não há uma relação estável entre empregado e empregador, aumentos de salários ocorrem para impedir o empregado de pedir demissão. Se os salários ficam defasados, devemos ver mais trabalhadores pedindo demissão, o que seria um indicador antecedente de pressões salariais e inflacionárias.
Em ambientes de baixa inflação, trabalhadores não estarão preocupados com os aumentos do custo de vida. Rudd cita estudos dos anos 1960 e 1970 mostrando que o nível de inflação somente virou algo importante nas decisões dos agentes quando a inflação superou 3% ao ano.
Essa visão casa com a literatura de “rational inattention”, modelos onde os agentes levam em conta o custo relativo de acessar e processar informação, e onde muitas vezes a decisão racional é de “não dar atenção”, neste caso, a de não dar atenção à taxa de inflação (e muito menos gastar tempo formando “expectativas racionais” sobre a inflação futura) (3). Rudd apresenta um modelo onde a relação entre expectativas de longo prazo e a inflação é decorrente de pequenos desvios da inflação corrente que são ignoradas pelos agentes, de tal forma que, contrário ao consenso novo keynesiano, são os desvios da inflação corrente dos seus patamares recentes que podem afetar as expectativas de inflação.
Quais as possíveis consequências desses argumentos para a conjuntura atual? Nos EUA, estamos vendo a taxa de pessoas deixando seus empregos (o “Jolts quit rate”) bater 3% ao mês, quando a média dos últimos 20 anos está mais perto de 2%. E isso com a compensação dos trabalhadores do setor privado medido pelo índice ECI batendo 4,1% ao ano, quando a média dos últimos dez anos é de 2,2%. E certamente os americanos estão prestando bastante atenção ao assunto da inflação, explicando boa parte da vertiginosa queda de popularidade do governo Biden. Esses fatos sugerem que o Federal Reserve pode estar cometendo um grave erro de política monetária, em parte pela crença que algumas (certamente não todas) medidas de expectativas de inflação de longo prazo ainda parecem “ancoradas”.
O grande debate sobre o lugar das expectativas que hoje está ocorrendo nos EUA está basicamente ausente no Brasil. Aqui, o Banco Central continua a dar grande atenção aos resultados do Focus, e a “ancoragem” das projeções dessa pesquisa está mais uma vez no centro das atenções da gestão monetária. Não se discute o fato que, desde 2001, a expectativa de inflação de dois anos no Focus tem uma correlação de 65,6% com a inflação corrente e de 1,2% com a inflação futura realizada. Isso deve ser porque, aqui no Brasil, “todos sabem ser verdade” que as expectativas de inflação do Focus têm que estar na meta, custe o que custar, ou devemos caminhar rumo a ‘argentinização’ da nossa economia.
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(1) Jeremy B. Rudd, “Why do we think that inflation expectations matter for inflation? (and should we?)”, Finance and Economics Discussion Series, Federal Reserve Board, September 2021.
(2) Para uma interessante discussão sobre “a escola de Princeton” veja Scott Sumner “The Princeton school and the zero lower bound”, Mercatus Working Paper, October 2021.
(3) Essa literatura é muito vasta. Uma boa referência é Christopher A. Sims, “Rational Inattention and monetaryeconomics”, Handbook of Monetary Economics, Volume 3, Elsevier, 2010.
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