Por Tony Volpon, em 8.11.2021
(Broadcast+) – Com o lockdown adotado inicialmente como resposta à pandemia global, era de se esperar que o processo de abertura seria desigual e um tanto bagunçado. O grau de fechamento foi diverso entre setores e áreas geográficas, e o processo de reabertura ocorreu sem sincronia dado as diferentes capacidades de adotar e manter medidas de distanciamento social e acesso e distribuição de vacinas.
A pandemia mexeu em uma economia global que passou por décadas de otimização logística, integrando complexas redes de suprimento. Sabemos que sistemas altamente otimizados podem mostrar grande grau de fragilidade. Enquanto todos inicialmente se preocuparam com a severidade do choque pandêmico, hoje ficou claro que o grande problema não foi sua intensidade, mas sim sua assimetria.
A forte desarticulação das cadeias de oferta – efetivamente, como o lockdown, algo que restringe a resposta da oferta – bateu de frente com o enorme, e também assimétrico, aumento da demanda (especialmente por bens) fruto de políticas fiscais e monetárias que – hoje também óbvio – foram desenhadas para uma crise de maior duração. Determinados a não cometer o erro de estimular pouco a economia, como depois da crise de 2008, os governos cometeram o erro inverso nesta crise.
A desarticulação da oferta – que também se estende ao mercado de trabalho – não foi visto inicialmente como muito problemática. A inflação que ela causa seria algo rapidamente superado e “transitório”, termo (ainda) utilizado pelo Federal Reserve e adotado por vários outros bancos centrais.
A tese da transitoriedade foi primeiro derrubada em um conjunto de países emergentes, o Brasil entre eles. Uma combinação de políticas fiscais e monetárias excessivas, forte alta nos preços dos insumos de produção e desvalorização cambial (causada em parte pelos excessos da política monetária, com alguns países pensando que poderiam copiar o Fed) levou a uma inflação a níveis muito acima do que se esperava.
Inicialmente isso era visto como algo restrito aos emergentes, economias com regimes monetários mais frágeis e que sempre tiveram níveis de inflação mais altos e mais voláteis que países desenvolvidos.
Desta forma, o mercado foi surpreendido quando, em sucessão rápida, bancos centrais de vários países desenvolvidos, como Reino Unido, Canadá, Nova Zelândia e Austrália, sinalizaram desconforto com o nível de inflação em seus países e a intenção de acelerar a normalização de suas políticas monetárias.
A reação das curvas de juros foi, em alguns casos, dramática. No caso da Austrália, por exemplo, o movimento semanal na parte curta da curva foi mais de 12 desvios padrões acima do normal.
Esses movimentos não ficaram restritos a esses países, que têm em comum serem economias relativamente “pequenas” (em comparação a países/zonas de dimensão continental, feito os Estados Unidos, a China e a zona do euro) e abertas, e assim mais vulneráveis a choques externos. Houve mudanças significativas na curva de juros nos EUA e nas curvas europeias (é verdade que a surpreendente decisão do Banco da Inglaterra de não subir sua taxa de juros depois de ter sinalizado fortemente essa intenção levou as taxas curtas a caírem).
Junto com a forte alta nas curvas curtas, houve queda das taxas longas, ou o “achatamento” da estrutura a termo.
A interpretação de muitos analistas seria que a expectativa de normalização monetária mais rápida estaria colocando a recuperação econômica em risco, com alguns ainda firmemente defendendo a tese que o surto inflacionário é somente transitório, acrescentando que esses bancos centrais estão prestes a cometer um erro de proporções históricas, como a alta de juros praticada pelo Banco Central Europeu em 2011.
É verdade que o formato da curva tem sido usado com algum sucesso para prever o ciclo econômico, e ela faz parte de vários indicadores antecedentes. Ainda assim, sua sensibilidade aos fundamentos econômicos tem diminuído com a execução dos programas de compra de títulos (QE, o “quantitative easing”). Por exemplo, no caso dos EUA há uma boa relação histórica entre a inclinação dos vértices de dez com dois anos e o nível do índice NAPM de atividade no setor de manufaturados. O atual elevado nível do NAPM sugere que a curva deveria ter uma inclinação perto de 2,5%, mas hoje ela está ao redor de 1,05% depois da recente queda do diferencial.
Um ponto adicional é que para realmente sinalizar uma forte preocupação com o crescimento econômico, devemos ver a curva inverter como um todo, com as taxas longas abaixo das taxas curtas, e ainda estamos longe disso.
Na sua última reunião na semana passada, o Fed anunciou o tapering do seu QE, mas também confirmou sua crença que os níveis atuais de inflação são transitórios, o que ajudou as bolsas americanas a baterem novos recordes. Apesar de o argumento da transitoriedade perder substância a quase cada novo dado divulgado, os EUA, detentor da moeda reserva global, têm o privilégio de “pagar a aposta e esperar para ver”.
Ainda acredito, posição que defendo desde o início deste ano, que a inflação que vemos hoje é um fenômeno bem mais complexo e duradouro, e que até os EUA vão ter que lidar com essa realidade. Mas até lá, Powell & cia. parecem determinados a jogar mais lenha na fogueira dos mercados, e não há porque morrer uma morte inglória lutando contra o Fed.