Por Tony Volpon, em 25.10.2021
(Broadcast+) – Não são muitas as vezes que o presidente de um país se envolve com um IPO, mas foi isso que aconteceu no ano passado, quando Xi Jinping decidiu, pessoalmente, cancelar o muito esperado IPO do Ant Group depois do seu dono, Jack Ma, ter feito críticas ao setor financeiro estatal.
O que na época foi visto como uma reação específica a um exemplo de mau comportamento de um empresário era na verdade o início da mais determinada tentativa de reformas da economia e sociedade chinesa desde a abertura econômica liderada por Deng Xiaoping em 1978, que transformou a China na potência econômica que conhecemos hoje. Há uma corrente de pensamento (bastante comum entre analistas de mercado) que tende a minimizar a importância da nova campanha política resumida no termo “prosperidade comum”, e que em breve tudo voltará ao já conhecido normal. Acredito que tal avaliação vai se provar bastante errada.
Precisamos de contexto. O sucesso econômico chinês não veio sem problemas. Depois da rebelião estudantil de 1989 houve forte contrarreação conservadora e que quase encerrou o período de reformas. Deng, um mestre da estratégia política, permitiu o imediato avanço das facções conservadoras até 1992. Porém, quando ficou claro que os conservadores não tinham agenda econômica alternativa, Deng, com seu Southern Tour de 1992, relançou as reformas em novas bases. Essa nova fase foi denominada por Yasheng Huang como “capitalismo com características chinesas”, com ênfase em um modelo baseado em forte repressão ao consumo para aumentar a taxa de poupança/investimentos, onde a diferença entre produção e a absorção doméstica seria exportada, processo que teve seu auge com a entrada da China (com forte apoio dos EUA) na OMC em dezembro de 2001.
Esse modelo teve sucesso inegável, mas gerou várias distorções. Essa avaliação não é novidade: já em 2007, o primeiro-ministro Wen Jiabao descrevia a economia chinesa como “desbalanceada, descoordenada e insustentável”. Os sintomas são bem conhecidos, os mais importantes sendo o excesso de alavancagem nos setores corporativos, grande concentração de riqueza e renda com crescentes disparidades entre os centros urbanos e as zonas rurais.
Enquanto a crise de 2008 abortou o início das reformas, com Pequim executando o maior programa fiscal da época (ao redor de 20% do PIB), logo em seguida se começou um processo de reformas graduais para diminuir as distorções do modelo de crescimento vigente (processo que levou a uma queda de crescimento da economia chinesa que teve impactos negativos crescentes em várias economias emergentes, inclusive o Brasil a partir de 2011).
Quando Xi Jinping chega ao poder, a especulação era que ele seria um líder reformista, mas não foi isso que imediatamente aconteceu. Suas prioridades imediatas foram uma forte campanha anticorrupção, fortalecimento do setor estatal, e um posicionamento geopolítico mais assertivo em relação aos EUA, especialmente depois do movimento paralelo no mesmo sentido do governo Trump.
Passando os quinze anos desde que o modelo econômico foi julgado como insustentável, o bem da verdade é que a estratégia de ajustes graduais teve sucesso limitado. Enquanto é verdade que houve alguns avanços, a economia chinesa hoje ainda demonstra excesso de alavancagem e crescentes disparidades sociais, entre outros males.
É nesse contexto que devemos entender a “prosperidade comum”. Prestes a pleitear um inédito terceiro mandato, quebrando o paradigma implementado por Deng de alternância de poder dentro do Partido, Xi se vê na posição de se justificar lançando um acelerado programa de reformas para atacar o que ele vê como ameaças futuras à estabilidade econômica e social da China. A “prosperidade comum” não é somente mais uma (das várias) campanhas políticas do Partido; devemos a ver como a própria justificativa para o inédito terceiro mandato de Xi.
Essa conclusão leva a várias consequências. Primeiro, não devemos ver nenhum “recuo tático” por Xi em função do custo que essas medidas estão cobrando do crescimento econômico, nada certamente antes da consagração do terceiro mandato, em outubro de 2022. Acredito que até mesmo o acionamento da política monetária para aliviar as pressões sobre a atividade, algo que ainda não aconteceu, deve ser postergado para ter seu efeito mais positivo coincidindo com o Congresso do Partido.
Não devemos menosprezar os riscos da agenda de Xi. Apesar de ser o líder mais poderoso desde Deng, a transição de um modelo econômico baseado no tripé endividamento/investimentos/exportações sempre sofrerá vários riscos de execução e forte resistência dos vários grupos de interesse que se beneficiam do modelo atual.
Como vemos de forma repetida em várias democracias (e é certamente o caso brasileiro), reformas necessárias são normalmente diluídas ou postergadas, e somente depois de períodos de crises que o sistema político reúne as condições sobre pressão para fazer o que já era evidentemente necessário. O sucesso da “prosperidade comum” está longe de ser garantida, mas o fato de ela existir é mais um testemunho da capacidade diferenciada de governança chinesa.