Por Tony Volpon, em 27.09.2021
(AE NEWS) – Como caracterizar o momento atual na economia global? Em retrospecto, a caracterização da economia global durante a fase mais aguda da pandemia foi mais simples, dado uma certa uniformidade de reação. Toda a economia global despencou no início, e quase todas tiveram, em algum momento, uma rápida
recuperação “em V” (com o timing relativo sendo ditado por uma combinação ao sucesso de vacinação e/ou adoção de medidas efetivas de distanciamento social junto com a capacidade de aplicar estímulo monetário e fiscal).
Estamos vivendo um momento de transição pós-pandemia. Assim vemos surgir situações mais distintas e riscos idiossincráticos, apesar de ainda haver um tema em comum afetando várias economias: a inflação.
Que a inflação se tornou um problema em comum não é uma surpresa, já que a melhor caracterização do efeito econômico da pandemia foi como um intenso choque de oferta (considere, por exemplo, que o NBER americano caracteriza a recessão causada pela pandemia como durando somente dois meses dos Estados Unidos, a mais curta recessão da história). A continuidade das várias restrições impactando as cadeias de suprimento globais mostra que resquícios do choque de oferta devem perdurar por mais tempo, talvez muitos anos.
Choques de oferta sempre passam tanto pelo sistema de preços, como pela queda da atividade. A rápida recuperação e o nível inédito de estímulo fiscal e monetário aplicado durante o choque pandêmico (felizmente) diminuíram o ajuste via queda da atividade agregada, o que (infelizmente) colocou mais pressão sobre a inflação.
Então, como cada país/zona econômica lida com a inflação será, talvez, o fator mais determinante para o comportamento dos mercados no resto deste ano e em 2022.
Vale a pena mencionar a grande exceção da onda inflacionária global: a China. A inflação ao consumidor do gigante asiático está em somente 0,8%, bem abaixo da média de 2% antes da pandemia. A principal razão pela qual a China tem escapado do surto inflacionário global tem a ver com a decisão de não desencadear um vasto programa de estímulo fiscal e monetário quando houve o choque da pandemia (bem diferente da Crise de 2008).
A recuperação “em V” da China veio antes dos outros países, com o rápido sucesso das fortes medidas de controle social da pandemia. Mas, desde então, o governo chinês tem adotado uma série de medidas de cunho social, ambiental e regulatório que representam, no seu conjunto, uma reestruturação do capitalismo chinês, com o governo disposto a pagar o preço da desaceleração econômica que essas medidas implicam. A grande sorte é que a China, ainda a “fábrica do mundo”, tem nos altos níveis de exportação um importante alicerce de crescimento em um período de desaceleração.
O país em que a questão local da inflação terá o maior impacto global será os EUA. De todas as nações desenvolvidas, hoje eles têm o processo inflacionário mais agudo (a média da inflação dos países do G10 é de 3,25%, versus 5,3% nos EUA). Isso se deve, em parte, ao nível excepcional de gasto fiscal feito durante a pandemia, que por algumas métricas chega perto (ou supera) daquilo feito durante a Segunda Guerra Mundial.
Apesar da intensidade da inflação, o Federal Reserve, sob o comando de Jerome Powell, tem tido grande sucesso em convencer o mercado de que o atual nível de inflação é transitório, e que já em 2023 a inflação voltará aos níveis desejados sem a necessidade de grande aperto monetário. Isso se deve à grande credibilidade da instituição; a uma memória inflacionária positiva, já que depois da Crise de 2008 a inflação se manteve abaixo da meta por boa parte do tempo; e à narrativa da “estagnação secular”, que argumenta que vários fatores estruturais garantem níveis baixos de inflação e de juros, e que hoje é aceita tanto pelo Fed como por boa parte do mercado.
O debate aqui é se esse consenso está devidamente reconhecendo as mudanças que ocorreram em reação à pandemia (como o nível de gasto fiscal e mudanças no mercado de trabalho) e em reação aos baixos níveis de inflação desde 2008 (o que levou o próprio Fed a formalmente mudar seu regime de metas para aumentar a inflação). Essas mudanças, no conjunto, podem alterar o comportamento da inflação para pior. Vale a pena notar que o próprio Fed, em suas últimas decisões, parece estar caminhando de forma mais rápida do que o esperado em direção à remoção do excepcional nível de estímulo monetário, especialmente na redução do nível de compras de títulos do Tesouro, mecanismo indireto de financiamento do gasto fiscal por emissão monetária, e forma de repressão financeira que tem garantido níveis negativos de juros reais apesar dos atuais níveis de inflação.
No espectro global da inflação, vários países emergentes têm tido os piores problemas, e infelizmente o Brasil se destaca por essa métrica de forma negativa. Apesar de justificável no período mais agudo da pandemia, o nível extraordinário de estímulo monetário deveria ter sido rapidamente normalizado quando, já no final de 2020, vimos uma intensa alta nos preços das commodities junto com forte desvalorização cambial e dados de inflação superando as expectativas do mercado e as projeções do Banco Central. O
experimento com taxas de juros negativas e “forward guidance”, que funciona bem nos EUA e na Europa, foi um retumbante fracasso no Brasil, e voltamos a amargar inflação de dois dígitos.
Enquanto uma postura mais dura da política monetária deveria ter sido empreendida naquele momento, o risco hoje está igualmente distribuído entre perder o controle das expectativas de inflação e em fazer um aperto demasiadamente forte para uma economia que mostra claro sinais de desaceleração.
Com a inflação rondando a 10%, levar a inflação à meta já em 2022 implica impor um nível de sacrifício inaceitável sobre o crescimento econômico. Enquanto não há decisão ou estratégia que possa ser adotada sem riscos, o Banco Central deve, admitindo isso ou não, suavizar o processo de ajuste e trabalhar para colocar a inflação de volta à meta em um prazo mais dilatado. Não se deve tentar corrigir um erro cometendo um outro na direção oposta.
Tony Volpon é estrategista-chefe da WHG (Wealth High Governance). Foi diretor do Banco Central e publicou “Pragmatismo sob Coação: Petismo e economia em um mundo de crises” pela Alta Books.